sexta-feira, 25 de março de 2011

Um documento da casa Furtado na Gandra

  
Nalgumas casas de lavoura guarda-se um pequeno arquivo com documentos antigos, de quando as propriedades pagavam foros, da remissão deles, de sentenças, escrituras mais recentes e outros documentos diversos. Na Gandra, na Casa Furtado ou da Granja, isso também acontece. E acontece até que, não sendo um arquivo nem particularmente volumoso nem particularmente diversificado, contém uma ou outra raridade.
Em 1220 o Mosteiro de Landim possuía em Balasar dois casais e uma granja: os casais deveriam ficar em Lousadelo, a granja era sem dúvida esta casa.
A fundação dos mosteiros de Landim, S. Simão da Junqueira e Rates, que todos possuíam propriedades na freguesia, data de um pouco antes da independência de Portugal. Nessa altura, os nobres abastados promoviam a manutenção destas instituições doando-lhe propriedades. Atendendo a que os Cavaleiros do Outeiro Maior (os Ferreiras, mais tarde ditos Ferreiras de Eça) continuaram a possuir propriedades confinantes com a Granja, podem ter sido eles os doadores do de Landim.
A diferença entre granja e casal teria a ver com a aptidão agrícola dos terrenos; os da granja seriam considerados de reduzida qualidade, apenas aptos para a criação de determinado tipo de gado. Os documentos falam até tarde de montado. Gandra e montado apontam para uma área agreste, pouco fértil, despovoada.
No arquivo da Granja há um documento especialmente curioso: é de 1826, mas copia outro de 1528. Infelizmente, houve grave descuido na sua conservação e ele está partido a meio, na horizontal. Assim três das suas linhas centrais estão total ou parcialmente ilegíveis.
O documento de 1528 contém o “título da demarcação do Casal da Granja” e começa assim:

Título da demarcação do Casal da Granja, freguesia de Santa Olaia (sic) de Balasar, o qual casal é do Mosteiro de Nandim (sic) e trá-lo agora Margarida Gonçalves, viúva, e seu filho Pêro Gonçalves; não tem prazo. Este casal, trá-lo Gonçalo Fernandes de Palmeira. Aos três dias do mês de Dezembro de mil quinhentos e vinte e oito anos.

A seguir vem a medição e demarcação dos prédios, mas não a do assento do casal. Com as limitações devidas ao estado da conservação do documento, transcrevemos o que sobre isto se registou.

Mediram e demarcaram um muito grande cerrado de bouças, que chamam a Granja em um (…) é cerrada sobre si, que parte da banda do aguião (norte) com o monte que é rossio e montado deste casal e da banda do abrego (sul) parte com o monte entre Bustelo e a Granja e Aguiar, que tudo é rossio e montado deste casal, águas vertentes, e do nascente entesta com o monte dos Seixos de Aguiar e do poente com a Bouça do Casal, que foi de Estêvão Ferreira, por valos, e mediram estas bouças assim como jazem de norte para poente acham setecentas e oitenta quatro varas de medir e de ancho (largo), do aguião para o abrego, trezentas e três varas; e dentro nesta medida e demarcação ficam estas bouças que se seguem: (…)

Duma dessas bouças afirma-se que “é fraca terra; semeia-se de vinte em vinte anos”.
Acrescenta-se a medição doutras propriedades:

Item outras bouças para o abrego, dentro no dito cerrado, que levarão de semeadura, se a terra fosse boa, cento (sic) alqueires, mas é terra sem água, fria e fraca, que não quer dar o terço, nem o quinto das sementes que lhe deitam assim de milho como de centeio; escassamente dão a semente, e em consciência não lhe sabemos o que lhe ponhamos de renda, tão ruins terras são.

A dada altura fala-se duns pardieiros de que só são visíveis os “alicerces com suas saídas, uma para o abrego, outra para o aguião e nascente e poente”. Presumimos que estas casas caídas em ruína tenham a ver com a já distante peste negra, que, cem anos antes, ditou a anexação de Gresufes a Balasar.
Os Seixos de Aguiar que ocorrem no documento são mencionados no Tombo da Comenda quando se faz a delimitação da freguesia.
Visto em documentos posteriores da casa se mencionarem os Cavaleiros, o Estêvão Ferreira que ocorre em 1528 foi com sem dúvida um dono da Casa de Cavaleiros no virar do século XV para o XVI (um neto seu, de nome Estêvão Ferreira d’Eça, está sepultado no Convento de S. Francisco de Vila do Conde).




O abade João Rodrigues

O Nobiliário das Famílias de Portugal de Felgueiras Gaio, ao falar dos Carneiros, traz esta informação sobre o “Morgado do Espírito Santo de Vila do Conde”:

Francisco de Barros Carneiro, filho bastardo de Álvaro Carneiro, foi moço de Câmara do Sr. Rei D. João III por alvará passado em Évora a 8 de Julho de 1831, faleceu em 1547. Casou com Genebra Rodrigues, filha bastarda de João Rodrigues, abade de Balasar, que instituiu nela no ano de 1526 o Morgado do Espírito Santo de Vila do Conde.

João Rodrigues deve ter sido o antecessor do abade Manuel Gonçalves. Como este deve ter residido em Vila do Conde, como ele foi dado a amores. O Pe. João Rodrigues criou na matriz da Vila uma Capela do Espírito Santo, que deve ter dotado de muitos bens e com eles é que criou depois o morgadio. Mas o Tombo de Balasar de 1542 não contém qualquer alusão nem à capela nem ao morgadio, o que parece que seria de esperar se eles afectassem os bens da paróquia.
O Francisco de Barros Carneiro com que a filha casou era bastardo como ela e era também dos Carneiros.
Conservam-se vários documentos relativos à capela do Espírito Santo, mas já tardios, de 1568, 1569, 1592 e um de 1603. Ao tempo dos dois primeiros, ainda administrava a capela Genebra Rodrigues, embora fosse um seu neto, Bento Rodrigues de Barros, “cavaleiro fidalgo da Casa Real” quem estava na origem deles. Viva em Vila do Conde e naturalmente conhecia a família de Gomes Carneiro, que casara com a filha do seu sucessor. Os documentos tratam de assuntos relativos à gestão dos bens da capela.


O abade Manuel Gonçalves

O Nobiliário das Famílias de Portugal de Felgueiras Gaio, ao falar dos Carneiros, também menciona o abade Manuel Gonçalves para dizer que ele foi pai de Margarida Álvares, esposa de Gomes Carneiro. E diz que, com ela, Margarida Álvares, aliás, Margarida Vaz, houve ele “duas propriedades que aí possuem os seus descendentes e houve também o morgado de D. Juliana sua parenta, filha de Maria Carneiro”. De facto, teve ainda uma segunda filha, Joana Manuela.
Deste abade e dos seus descendentes falaremos mais adiante.

Da dissolução dos costumes à Contra-Reforma: alguns factos
Nas proximidades de Balasar, conhecem-se alguns factos que documentam a dissolução dos costumes reinante antes da Contra-Reforma[1]. Paga a pena recordá-los até para lhes contrapor outros, de sentido inverso.
Em 1503, nasceu o filho do prior de Rates Tomé de Sousa, que foi o primeiro governador-geral do Brasil.
Em 1542-1543, foi arcebispo de Braga D. Duarte de Portugal: tinha 21-22 anos e era  filho natural de D. João III e de Isabel Moniz, tendo sido concebido ainda antes do casamento de D. João com Catarina de Áustria.
O vila-condense D. João Ribeiro Gaio, que esteve à frente do bispado de Malaca no final do século XVI, foi pai de quatro filhos.
O Pe. vila-condense Manuel Carneiro, filho de Margarida Vaz, antepassada de D. Benta e neta do abade Manuel Gonçalves, teve também bastardos.
A estes factos inteiramente reprováveis, e certamente houve outros que desconhecemos, há que contrapor o seguinte:
Vila do Conde deu à Igreja um homem tão notável como Fr. João de Vila do Conde, o Apóstolo do Ceilão, que se dirigiu para esta ilha em 1543 e aí trabalhou algum tempo às ordens de S. Francisco Xavier; deixou obra notável.
Na mesma Vila do Conde nasceu cerca de 1530 o Pe. Manuel de Sá, SJ, autor de dois livros de tema bíblico e dum de tema moral que fizeram dele uma referência cultural europeia ou até mundial durante séculos.
O beato Fr. Bartolomeu dos Mártires, principal padre conciliar do Concílio de Trento, foi arcebispo de Braga entre 1559 e 1581.
Passaram neste século XVI por Braga homens tão envolvidos na Contra-Reforma como S. Francisco de Borja, o beato Inácio de Azevedo, etc.
Se não devemos ignorar o que houve de mal, convém dar a maior visibilidade ao que houve de bom.

A criação da Comenda

D. João III, rei de 1521 a 1557, enfrentou desde cedo graves problemas económicos. Alguns deles solucionou-os fazendo uma espécie de nacionalização dos rendimentos dos párocos a quem estes manifestamente sobejavam. Foi assim que, para compensar serviços prestados à coroa, criou as comendas.
O rendimento do pároco de Balasar deve ter ficado reduzido a um quarto. Mal que veio por bem. Párocos vizinhos tinham um rendimento muito menor que esse quarto.
A referência mais antiga que vimos à Comenda de Balasar data de 1577, mas devia existir desde há uns bons 30 anos. Era então comendador de “Santa Ovaia de Balazar” Gonçalo Mendes de Brito.



[1] Dois escritores portugueses célebres, contemporâneos destes sacerdotes, verberaram os sacerdotes luxuriosos (Gil Vicente) ou demasiado preocupados com os bens materiais (Luís de Camões).

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